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HISTÓRIAS DE TERROR - O Tempo dado aos Mortais


Todos na sala estavam ansiosos. Ênio, o gerente, apelidado “O psicopata corporativo” por seus funcionários, havia convocado uma reunião minutos depois do horário de entrada. Oito pessoas foram chamadas, incluindo Ramon, que parecia o mais nervoso de todos. 

— O que você acha que é ? — perguntou ele a William, o analista de sistemas.
— Não faço ideia — cochichou este — ele estava com aquela cara de que vai ferrar alguém. Acho que não deve ser coisa boa.
— Nunca é coisa boa quando vem dele — murmurou Ramon.
A porta abriu com violência. Ênio entrou bufando como um animal que alcança sua presa após a perseguição.
— Alguém aqui esta descontente com a empresa ? — rosnou ele com tom de voz elevado — porque se alguém estiver, peça demissão.
Todos abaixaram a cabeça trocando olhares discretos. Ênio continuou.
— O horário de entrada é as nove horas. Não nove e cinco, ou nove e dez, ou nove e quinze — disse enquanto fuzilava a todos com o olhar.
— São mesmo um bando de irresponsáveis, um bando de crianças — desferiu um soco na mesa. Mirava cada rosto esperando que alguém se manifestasse. Todos estavam chocados. Limitaram-se apenas a expressões de incredulidade e espanto — Ênio voltou-se para Ramon — você, na minha sala, agora — e saiu batendo a porta.
—  Droga — Ramon se levantou como quem vai para o matadouro.
— Vai ficar tudo bem — confortou William. Ramon não tinha tanta certeza. Ninguém tinha.
***
Ramon entrou na sala de Ênio esperando o pior. Não imaginava o que ele queria. O psicopata estava de costas atrás de sua mesa, olhando pela janela com as mãos na cintura.  
— Feche a porta e sente-se — ordenou  — Ramon se sentou acuado. Já havia entrado naquela sala por diversas vezes nos últimos oito meses. Nunca saia dali sorrindo, e cada vez mais pensava em procurar outro emprego. A idade atrapalhava um pouco, mas era necessário, ou enlouqueceria trabalhando para aquele nazista. Tinha dois filhos, e só por causa deles ainda não tinha jogado tudo para ar.
Havia na mesa do crápula dois porta retratos. Um com sua esposa — ou ex-esposa — e seu filho. O outro trazia uma foto dele em uma cama com faixas sobre a cabeça. A mulher estava ao lado sorrindo, mas não o filho. Todos sabiam da historia. Ele tinha sobrevivido a um sério acidente de moto.
Arrebentou-se contra uma arvore. Estava embriagado ao sair de uma festa.
Sobreviveu para infernizar algumas vidas por mais algum tempo.
Ênio sentou-se, deu um longo suspiro e ficou encarando Ramon, tempo suficiente para ser desagradável. Então abriu a boca.
— Você não trabalha depois do horário, é isso mesmo ? — inquiriu ele. 
— Bem,  eu posso trabalhar, sim, depois do horário — respondeu Ramon hesitante.
— Então porque ouvi você dizer que não trabalha e acha um absurdo quem trabalha ? — sua voz se elevou. Ramon se lembrava da ocasião em que tinha dito algo parecido, embora não exatamente aquilo. Imaginava que Ênio o tivesse ouvido escondido, como costumava fazer.
— Ênio eu...
—  É senhor Ênio para você.
—  Eu.. hã. O que eu disse é que todos tem trabalhado até depois do horário e nunca tivemos nenhum tipo de reconhecimento. Nem hora extra, nem dias de folga. Todos temos uma vida fora daqui...
— O negocio é o seguinte — Ênio interrompeu. Se levantou quase num pulo. Em segundos seu rosto estava a poucos centímetros do de Ramon — vocês serão recompensados no tempo e da forma que a empresa determinar e...
— Ênio por lei... — Ramon tentou se defender.
— É senhor Ênio para você — berrou. Seus olhos pareciam querer saltar sobre Ramon — você quer
falar sobre lei ? Sobre direitos ? Então vá procurar os seus direitos. Limpe o lixo da sua mesa. Quero você fora daqui até a hora do almoço ou vou chamar a segurança. Acha que pode colocar meus funcionários contra mim ? Acha que conhece as leis ? Por um momento Ramon se imaginou caindo sobre Ênio e o enforcando com a gravata. Então começou a ouvir a voz do canalha cada vez mais distante, como num sonho. Sentia a cabeça pesada, o coração acelerado.
Até um simples pensamento como levantar-se e sair parecia difícil articular. Não se sentia nada bem. Ênio continuava a vomitar ameaças e impropérios. Não conseguia mais ouvi-lo, mas só podia ser isso, pela expressão do rosto e os gestos.  Ramon tentou se levantar.
Parecia ter conseguido. Então a sala começou a girar como um carrossel, alternado entre a porta de saída fechada e a visão de Ênio, que agora lembrava Hitler fazendo um discurso. A luz diminuiu gradualmente até escurecer de vez. Ramon perdeu a consciência.
***
Mais um dando chilique – Ênio pensou quando viu Ramon sendo levado para o ambulatório. Por um momento achou que o infeliz tinha tido uma ataque cardíaco fulminante, mas fora apenas um esgotamento mental, conforme a notificação do medico da empresa. Os curiosos haviam se aglomerado na porta. Alguns ajudaram a carrega-lo. Todos olhavam para Ênio como se este o tivesse matado. Era ridículo, pensava ele. Havia muito estresse na empresa e isso era de certo modo necessário. Ênio era pago para fazer as coisas andarem e chutar traseiros, se necessário. Se alguém não suporta estresse que mude de emprego, ou mesmo de profissão, dizia para si mesmo no silencio de sua sala.
Imaginava o que todos  estavam pensando. O sem sentimento, o carrasco, ou qualquer coisa assim. Dane-se ! Não importava para ele.
O que importava era que ele era responsável por aquele departamento — uma importante engrenagem de uma máquina maior — e ela deveria funcionar de forma primorosa. Se, para isso, os elementos errados tivessem de ser expelidos, que assim fosse. Era a lei natural das coisas e ele desejava cumprir seu papel. Não importava o que os outros pensassem. Eles não entendiam. E, na opinião de Ênio, nem precisavam entender. Ele entendia. Eles precisavam apenas obedecer.
— O Sr. Richard ligou — a voz suave de Lílian, a secretaria, o trouxe de volta à realidade.
Seu perfume encheu a sala. Tinha 37, 38 anos. Loira, um corpo perfeito. Estavam tendo um caso a alguns meses.
—   Seu filho também —  ela continuava a falar, gesticular e sorrir. Não precisava fazer muito para provoca-lo. E ela sabia disso.
— O que ele queria ? — Ênio perguntou.
— Seu filho ?
— Não, meu filho não. Richard — ele se levantou e fechou a porta.
— Ele quer uma reunião... — Ênio a abraçou e a beijou. Ela retribuiu por alguns segundos, então começou a resistir suavemente.
— Alguém pode ver — disse ela entre um beijo e outro — a gente tem bastante tempo hoje a noite.
Ênio deu um ultimo e demorado beijo e a deixou. De fato haveria bastante tempo logo após a ultima reunião.
O dia seguiu sem maiores problemas. Ramon ficaria dois dias em casa e Ênio teria que substitui-lo. Pensava na possibilidade de substitui-lo de vez. Decidiu esperar sua volta e manda-lo embora dias depois, quando as coisas esfriassem. Contrataria alguém de fora. Uma mulher, talvez.  
Ele desceu até a sala de reunião sozinho no elevador. Arrumou o cabelo no espelho. Alguns fios estavam ficando brancos mas o charme permanecia. 45 anos. Não se sentia com 45 anos.  
***
Apos as 19 horas o departamento estava deserto. Um exercito de mesas e monitores de computador. O único som vinha do ar condicionado.
— Esses safados aproveitaram  que eu estava em reunião e deram no pé — Ênio resmungou.
Até mesmo Lilian tinha ido embora. O que ela havia dito sobre Richard ? Pelo que ele lembrava, Richard viria até aqui. Ou eu deveria ir até o escritório dele ? Sempre fora organizado. A memoria não era das melhores mas ainda funcionava. Talvez a discussão de manhã o tivesse afetado mais do que ele imaginava. Ligaria para Lilian de sua sala. Aproveitaria para descobrir porque raios ela não o havia esperado.
A alguns metros da sala, percebeu que alguém o aguardava. Richard por certo. Não conhecia o cara pessoalmente, mas só podia ser. Trocaram vários e-mails na ultima semana. Precisavam mesmo conversar sobre o projeto dele.
Quando entrou na sala, viu um homem aparentando ter 55, 60 anos. Estava vestido informalmente e parecia bem a vontade enquanto segurava um dos porta retratos de Ênio, aquele que trazia sua mulher e filho.
— Senhor Richard — cumprimentou, um pouco incomodado por vê-lo mexer em suas coisas.
— Boa noite, senhor Ênio — respondeu ele sem tirar os olhos do retrato.
— É um prazer conhece-lo pessoalmente. Acho que vamos precisar rever os prazos do seu projeto. Só assim teremos condições de atender as alterações que senhor solicitou — Ênio apertou a mão do homem enquanto forçava o mesmo sorriso enlatado que usava em reuniões com superiores e em confraternizações da empresa. Deu a volta na mesa e se sentou  — pensei que eu iria até o senhor e não pensei que fosse hoje.
—  Não, Ênio. Posso chama-lo apenas de Ênio, não posso ? — ele recolocou a retrato onde estava e acomodou-se na cadeira.
— Como quiser.
— Na verdade eu viria até você. Sou sempre eu quem vai até as pessoas na hora certa. E, sim, o dia é hoje mesmo — Ênio estranhou a resposta. Ele estava sendo sínico ? porque ?, pensou.
— Você tem uma bela família — comentou Richard  — parece um homem ocupado. Imagino que não os veja com frequência.
Ênio não estava interessado em falar sobre a família. Na verdade, o quanto antes pudesse despachar aquele homem seria melhor. Ainda queria se encontrar com Lilian. Porém, tinha mesmo que resolver algumas coisas com aquele distinto senhor e não faria mal se conversassem um pouco.
— Essa é minha ex-mulher e esse é meu filho. - Se separou a muito tempo? — Perguntou ele.
— Faz um ano. No começo foi um pouco difícil, mas agora esta tudo bem.
— Encontrou outra pessoa — arriscou Richard, sorrindo. Aquele interesse na vida pessoal começava a incomodar Ênio.
— Na verdade... sim — Respondeu, tentando parecer natural.
— Deixe-me adivinhar: é a secretaria não é ? Ela é muito bonita — o homem exibia um sorriso malicioso.
— Bem eu... na verdade saímos algumas vezes apenas e... um momento por favor — Ênio sacou o celular do bolso e fingiu atender a uma chamada.
— Sim, já estou subido... acho que 30 minutos... Eu sei, eu sei. Pode deixar.
Guardou o celular. Parecia que Richard tinha acreditado
— Senhor Richard, me desculpe. Não tinha certeza se o senhor viria hoje. Tenho uma reunião com
Um dos diretores em meia hora.  Podemos marcar um almoço qualquer dia desses para conversarmos mais — Richard apenas balançava a cabeça, sempre com o mesmo risinho nos lábios.
— Que tal definirmos um novo prazo para o seu projeto e...
— Claro... o projeto — interrompeu Richard em um tom que beirava a zombaria, parecia mesmo querer irritar Ênio, e estava conseguindo   — o trabalho em primeiro lugar, não é mesmo? E que se dane o resto !
Ele disse isso mesmo ? Enio pensava que não tinha ouvido direito. Se perguntava se aquele homem teria algum problema mental leve, ou algo parecido. Quem sabe apenas tivesse tido um dia ruim e não estava sabendo lidar com isso. De qualquer forma, Ênio decidira ser o mais profissional possível. Enquanto pensava como responde-lo, Richard continuou
— Antes de definirmos um novo prazo, posso lhe fazer uma pergunta?
— Fique a vontade — Ênio tentava relaxar.
— A secretaria.. — Richard se inclinou com se esperasse ouvir um segredo — ela é boa de cama?
Ênio sentiu um arrepio subir da barriga até o topo da cabeça. Que raio de conversa era aquela ? Com quem esse imbecil pensa que esta falando ?
— Senhor Richard, acho melhor conversarmos em outra...
— Porque continua a me chamar de Richard ? — o rosto do homem assumiu uma expressão sombria.
Ênio o encarou por alguns segundos.
—  Quem é o senhor, então?
O homem se levantou devagar. Ficou parado encarando com expressão séria. Ênio sentia o ar pesado. Algo estranho estava acontecendo. Cada segundo passava lento, frio, solene como o sino de um campanário anunciando a hora em que algo deveria acontecer.
—  Eu sou o fim do tempo que os homens tem nessa terra... — respondeu o homem com a voz mais grave do que a normal. Seu rosto começou a se transformar, passando de uma versão bizarra daquela que Ênio tinha encontrado em sua sala até se tornar algo hediondo. Algo que nenhum ser humano deveria ver.  — Eu sou o arauto para o outro lado...
Suas roupas haviam dado lugar a uma longa túnica negra, a principio desproporcional ao corpo, mas que depois começou a se ajustar a medida que a criatura crescia.
 — O meu nome não importa. O que importa é o que vim fazer.
Ênio estava petrificado enquanto esperava acordar daquele pesadelo grotesco.
O ser se aproximou e tocou seu ombro. Ênio caiu sobre os joelhos. Não conseguia mover-se Não mal tinha forcas respirar.
— Por favor — sua voz era débil. Quase inaudível
— Se tem algo a dizer, sou todo ouvidos — disse a criatura com voz gutural.
— Por Favor — suplicou Ênio mais uma vez.
— Talvez você ache que não deveria ser agora. A grande maioria acha. Mas isso porque muitos são como você — ele olhava em volta da sala enquanto falava —  O seu mundo se resume no que acontece entre essas paredes. Negligenciou aqueles que o amavam...
—  Por favor.. por Deus — Ênio continuava implorando.
— Porque fala Nele agora? Você sempre O desprezou. Mesmo quando Ele lhe deu uma segunda chance, você atribuiu tudo ao acaso. Eu só vou onde Ele manda.  Não posso ir além. Estou aqui porque essa é a vontade Dele.
Grossas correntes saíram por debaixo da túnica do ser. Serpentearam pelo ar até se enrolarem firmes ao pescoço de Ênio.
— Você já teve todo o tempo que precisava. Toda chance que merecia ter. Agora e hora de ir.
Ele apontou para a parede ao lado da mesa. Um ponto de luz apareceu e cresceu até tomar toda a extensão da parede, revelando uma estrada tortuosa e escura.
 — As pessoas que te amam, não são muitas devo dizer, mas elas o amam. São aquelas que você desprezou, vão chorar por você. Vão se perguntar onde você esta. Se é um bom lugar.
Ele se inclinou até seu rosto ficar a poucos centímetro do de Ênio.
— Considerando a vida que você levou, acho que sabe para onde esta indo.
 Ele voltou-se para o portal e passou por ele arrastando Ênio atrás de si.
***
Na manhã seguinte, Ênio seria encontrado pelo pessoal da limpeza. A noticia se espalharia depressa: ataque do coração. Sua secretaria ficaria inconsolável por alguns dias. Pelo menos até a entrada do novo gerente, que se tornaria o novo amor da vida dela. No de apartamento, a vida continuaria como sempre. A grande máquina da rotina diária seguira funcionando, agora com alguns funcionários respirando aliviados.
O filho de Ênio, o mesmo que esperou o pai chegar por incontáveis noites até ser vencido pelo sono, percebeu algo enquanto olhava a lápide de seu velho. Mesmo com pouca idade, entendeu que aquele traço separando as duas datas, o nascimento e a morte de seu pai, representavam toda a vida dele. Breve e rápida.
Decidiu naquele momento que viveria sua vida de modo diferente. Daria importância ao que realmente importava, se lembraria que chegara a esse mundo sem nada e iria embora dele sem nada levar.
Acima de tudo, teria cuidado com o tratamento dado a seus semelhantes e o legado que deixaria para o mundo. Usaria com sabedoria o tempo dado aos mortais.
“E no mesmo instante, feriu-o o anjo do Senhor, porque não deu glória a Deus, e comido de bichos, expirou” Atos 12:23.
“Mas Deus lhe disse: Louco! esta noite te pedirão a tua alma; e o que tens preparado, para quem será?” Lucas 12:20


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Autor Patrick Neves

O tipo bom de má companhia...

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